O Sistema de Identificação Criminal dos Brasileiros e o Direito de Proteção de Dados Pessoais.
Recentemente, foi publicado em diversos meios de comunicação, informações a respeito das intenções do Ministério da Justiça em criar um Sistema de Identificação Criminal dos Brasileiros.
Apesar do referido sistema ter recebido a denominação de Sistema de Identificação Criminal, esse não identificará apenas os criminosos do Brasil. O sistema em questão pretende fornecer à Polícia Federal a capacidade de identificar qualquer cidadão em território nacional, por biometria.
A informação passou a desempenhar um papel fundamental na sociedade contemporânea, ou sociedade da informação como também é conhecida. A revolução das tecnologias da informação e das comunicações levou ao surgimento da digitalização das informações, a criação de banco de dados, a conectividade em rede e a um fluxo de compartilhamento de informações inimaginável.
Este novo cenário não só ampliou as oportunidades de novos negócios, onde as informações são o seu principal insumo, mas também colocou os cidadãos sob risco de terem seus dados expostos.
O projeto do Ministério da Justiça nos leva de volta à década de 70, quando surge a primeira geração de normas de proteção de dados pessoais. Essas normas nasceram em resposta ao processamento eletrônico de dados, tanto pelo Estado como pelo setor privado, mas acima de tudo, contra a ideia de centralização dos bancos de dados em banco de dados nacionais .
Nas lições de Laura Schertel Mendes, “o conceito do projeto era a de que um único centro de dados nacional eximiria os demais órgãos do governo de investirem em informática e em tecnologia de armazenamento” .
Após inúmeros debates acerca do tema, chegou-se à conclusão de que uma centralização desse porte, daria muito poder ao Estado em relação à vida dos cidadãos.
Apesar de não ter sido fornecido muitos detalhes sobre o Sistema de Identificação Criminal dos Brasileiros, sabemos que este será um banco de dados nacional, a princípio para a Polícia Federal, mas quem garante que as polícias estaduais não irão solicitar acesso a esse banco de dados tão abrangente, tornando-o um banco de dados nacional centralizado? Quem sabe precisar se esse projeto não resultará em um controle demasiado, por meio da ampliação da coleta e processamento de dados pessoais, dos cidadãos brasileiros?
O tema é de suma importância, quando estamos nos referindo à direitos fundamentais garantidos na Constituição.
A partir da inteligência do art. 5º, inciso X, da Constituição Federal, que garante a inviolabilidade da intimidade e da vida privada e do novo conceito de privacidade, que evoluiu do direito de ser deixado só, para “o poder de revelar-se seletivamente ao mundo” , é possível vislumbrar uma tutela ampla da personalidade e da vida privada dos cidadãos, que engloba os riscos do processamento de seus dados.
Por conseguinte, quando se interpreta a norma do artigo 5º, inciso X, em conjunto com a garantia do habeas data e com o princípio fundamental da dignidade humana, é possível extrair-se da Constituição Federal um verdadeiro direito fundamental à proteção de dados pessoais.
Seguindo essa linha de raciocínio, recentemente, o Supremo Tribunal Federal – STF, reconheceu a autonomia do direito fundamental à proteção de dados pessoais ao declarar a inconstitucionalidade da Medida Provisória 954/2020, que dispunha sobre o compartilhamento de dados de usuários dos serviços de telefonia fixa e móvel de milhões de brasileiros com o IBGE .
Importante ressaltar que de acordo com as notícias veiculadas nos diversos meios de comunicações, a respeito do Sistema de Identificação Criminal dos Brasileiros, “atualmente, a Polícia Federal conta com um banco de dados com 23 milhões de perfis, baseado em informações colhidas de passaportes, registros de crimes e autorização de posse e porte de armas de fogo. No entanto, o novo sistema deve cadastrar mais de 200 milhões de brasileiros, ou seja, praticamente toda a população. A corporação aponta que a ferramenta é fundamental para ampliar e tornar mais eficiente o combate ao crime organizado, tráfico de drogas, tráfico de pessoas, corrupção, além de auxiliar nas atividades de inteligência” .
O Brasil aprovou em 2018, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, que dispõe sobre o tratamento de dados pessoais, inclusive nos meios digitais, por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, com o objetivo de proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural.
Para tal, determinou-se que a proteção de dados pessoais tem como fundamentos o respeito à privacidade; a autodeterminação informativa, a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião, a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem, o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação, a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor, e os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.
Dentre os fundamentos acima mencionados, importante atentarmos para o Direito à Autodeterminação Informativa, ou seja, o direito do usuário de exercer o controle sobre seus próprios dados.
Na lição de JJ. Gomes Canotilho “[...] contrapondo-se à ideia de arcana práxis, tende hoje a ganhar contornos um direito geral à autodeterminação informativa que se traduz, fundamentalmente, na faculdade de o particular determinar e controlar a utilização dos seus dados pessoais.”
O direito à autodeterminação informativa é de suma importância haja vista que o acentuado desenvolvimento tecnológico permite, não só a interconexão e troca de informações entre bases de dados, mas a reunião de diversas informações que podem levar ao uso abusivo das mesmas, seja pelo governo como meio de restringir a liberdade dos cidadãos, seja pelas entidades privadas com fins discriminatórios. Assim, torna-se imperativo que os cidadãos possam controlar a utilização de seus dados.
Projetos como os do Ministério da Justiça serão regulamentados pela Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, que teve sua vigência adiada por diversas vezes e, agora espera-se que entre em vigor em agosto de 2021. Até lá devemos fomentar o debate em sociedade, para que possamos exercer nosso direito de controlar como, quando e onde nossos dados pessoais estão sendo usados.
Os cidadãos brasileiros precisam estar atentos a defesa dos seus direitos de proteção de dados para não serem surpreendidos com “serviços de inteligência” desenvolvidos pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi), ligada ao Ministério da Justiça, que monitorou 500 (quinhentos) servidores públicos da área de segurança, com possível intuito de limitar suas liberdades de expressão .
A coleta e tratamento de dados, seja para que finalidade for, somente será legítima se seguir as disposições legais vigentes e, dependendo do caso, com autorização judicial.
O regime democrático não pode permitir a existência de atividades de coleta e tratamento de dados, sem finalidade específica, é necessário agir com transparência e respeitando os direitos da personalidade, dentre esses o da privacidade e da autodeterminação informativa, afinal de contas, vivemos em um Estado Democrático de Direito onde as autoridades devem prestar contas de seus atos e não exercê-los nas sombras.